Neste próximo final de semana será celebrada a 25ª edição da Lesbisch-Schwules Stadtfest (Festival Lésbico-Gay) em Berlim, também popularmente conhecido como Straßenfest. Em um ano muito importante para a comunidade LGBTQI na Alemanha, no qual foi aprovado o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a festa busca fortalecer e celebrar todos os direitos adquiridos nas últimas décadas.
O festival, que reúne aproximadamente 400 mil visitantes todo ano, ocorre na região próxima à estação de metrô Nollendorfplatz, localizado na linha U1, e é delimitado entre as ruas Motzstraße, Eisenacher Straße, Fuggerstraße e Kalckreuthstraße. O evento é celebrado com muitas atividades, com música ao vivo e conta com barracas de comidas, bebidas, artesanatos e também de órgãos relacionados às causas LGBTQI.
Entre a multidão, pessoas de todas as idades e identidades de gênero celebram a diversidade sem muitas vezes conhecer todo o processo histórico que a comunidade da cidade de Berlim passou para que se fosse possível festejar livremente, como é feito nos dias de hoje.
Esta história nos transporta para quase um século atrás, quando a República de Weimar emergiu dos destroços da guerra na Alemanha. O Kaiser foi restituído, o Tratado de Versalhes de 1919 definiu a abolição do Império e a perda de quantidades significativas de seu território. Foi um período turbulento e torturante para a Alemanha, mas Berlim, a antiga capital imperial, acabou por se tornar a cidade mais liberal da Europa.
Foi em Berlim, onde os cientistas concluíram que “o amor do mesmo sexo era uma característica natural e inata e não apenas uma perversão de uma ‘tendência sexual’ normal”, o autor e estudioso Robert Beachy escreve em seu livro convincente, “Gay Berlin: Birthplace of a Modern Identity by Knopf Publishers”.
Uma postura alternativa, uma vida urbana vibrante e atitudes sociais relaxadas, juntamente com o fluxo de dinheiro americano, definiram os anos dourados (anos 20) em Berlim, que foi um dos períodos mais criativos da história alemã. A cidade não só esbanjava liberdade e boemia, como já concentrava o maior fluxo de carros que passavam diariamente pela Potsdamer Platz. Neste período foi criada a primeira vila gay do mundo: Schönenberg.
Mesmo antes dos anos dourados a cidade já tinha um caráter diferenciado. Em 1896 foi publicada a primeira revista gay do mundo chamada “Der Eigene” e, embora tenha sido algo ilegal para época, foi um marco que acarretou discussões sobre os direitos dos homossexuais da época.
Berlim foi pioneira em um modelo de sociedade que se assemelha com o que vivemos hoje. Com a Grande Depressão de 1929 e o crash do mercado de ações norte-americano, fortaleceu o governo liderado por Hitler na primavera de 1930 e os nazistas iniciaram sua ascensão com as novas eleições do Reichstag.
Após um mês da nomeação de Hitler, o Palácio do Reichstag ardeu em chamas. O fogo, que começou às 21:14 do dia 27 de fevereiro de 1933, destruiu o edifício. Aproveitando da situação conturbada, Hitler declarou estado de emergência e encorajou o então presidente da época a assinar o Decreto do Incêndio do Reichstag, que suspendia a maioria dos direitos humanos, estes que tinham sido garantidos pela constituição de 1919. Com isso, Adolf Hitler completou sua marcha para o poder e, com fúria, os nazistas perseguiram Hirschfeld como símbolo de tudo o que odiavam – como judeus, homossexuais e sexologistas.
Nos campos de concentração, homossexuais, junto aos judeus, eslavos, prisioneiros de guerra soviéticos, poloneses, ciganos, deficientes, maçons, eslovenos, testemunhas de jeová e outros grupos menores morreram, servindo como experimento para experiências diversas ou sofrendo com os atos desumanos destes locais.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, estima-se que cerca de 5 a 15 mil homossexuais foram mortos em campos de concentração. Os que sobreviveram e foram libertados dos campos não foram considerados como vítimas de guerra e não receberam assistência, como os judeus por exemplo. Até os dias atuais não foi recebido um pedido de desculpas oficial do governo alemão pelo ocorrido e os poucos sobreviventes ainda aguardam por este gesto de condolência.
Alemanha fora destruída novamente. Pior que isso, Berlim estava dividida em duas em um dos experimentos sociais mais bizarros da história. Um lado comunista e conservador, do outro os Estados Unidos injetando dinheiro e reerguendo a cidade, o que ao mesmo tempo, sem perceber, criou oportunidades para que a comunidade LGBTQI da época buscasse seu espaço e direitos.
Durante os anos 60 houve muita discussão e ocorreram inúmeras manifestações que lutavam pela alteração do polêmico parágrafo 175. O § 175, também conhecido como Seção 175, foi uma disposição do Código Penal alemão de 15 de maio de 1871 a 10 de março de 1994. Ele ditava os atos homossexuais entre os homens como um crime, bem como formas de prostituição e abuso sexual de menores de idade. No total, cerca de 140 mil homens foram condenados de acordo com a lei.
Os movimentos na Berlim Ocidental ganharam força e conseguiram retirar do parágrafo 175 o trecho que criminalizava a homossexualidade, isso já no final dos anos 60. Na Berlim Oriental isso demorou um pouco mais. Esta mudança fez com que Berlim Ocidental se tornasse uma das cidades europeias com mais liberdade para os gays, que na época se resumiam restritamente à Amsterdam e Colônia.
A Homosexuelle Aktion Westberlin (HAW, Ação Homossexual da Berlim Ocidental) foi a primeira organização gay moderna na Alemanha, fundada em 1971. Inicialmente formado por um grupo exclusivamente de homens, a HAW protestou contra leis anti-sodomia persistentes.
Em 1977 foi inaugurada a Schwuz, uma das baladas LGBTQI mais disputadas na cidade hoje em dia, e que naquela época reunia em seu estilo underground toda a rebeldia e liberdade que os jovens gays da época buscavam e alvejavam.
Durante este mesmo período começaram a surgir os primeiros casos de HIV, que levaram inúmeros jovens a se contaminarem e morrerem em decorrência da AIDS. Foi um período muito conturbado e a falta de informação, somada à angústia de ver amigos morrendo enfraquecidos, continua tema de muitas exposições e matérias divulgados no Schwules Museum, sendo este o primeiro Museu Gay do mundo, que é uma instituição privada dedicada à preservação, exibição e descoberta de história, arte e cultura gays e lésbicas.
A história caminhou e após a queda do muro, os homossexuais do lado oriental puderam se juntar as causas e a explorar as conquistas do lado ocidental. A reunificação da Alemanha trouxe a possibilidade de celebrarem juntos a Parada Gay e também o Straßenfest. Parte desta história foi contada no filme Mein wunderbares West-Berlin (Minha maravilhosa Berlim Ocidental), que também esteve presente entre os filmes expostos no Berlinale de 2017 (O trailer do filme pode ser assistido no link abaixo).
Uma frase constantemente repetida na Alemanha é “recordar para não se esquecer”. E este é um dos objetivos do Straßenfest: recordar e se orgulhar de todos aqueles que lutaram e tornaram possível que em 2017 o casamento de pessoas do mesmo sexo fosse aprovado pela maioria do parlamento alemão. Depois da repressão de todo um século, surge agora um arco-íris de esperança no futuro alemão!
Fontes: Daily Mail Online | Film Mein wundabares West-Berlin | Foto de capa: Marcel Scharner